Vidas a Prazo, reportagem do Expresso
O homem, de meia idade, era bem-parecido. Ar distinto, fato e gravata, professor universitário, respeitado por todos. Dava aulas numa faculdade privada há doze anos, quando um dia foi «dispensado». Havia, no entanto, um 'se'. Apesar de cumprir as funções de docente de forma continuada, o professor tinha um contrato de prestação de serviços, não era trabalhador por conta de outrem. Estava a recibos verdes, e isso significa não ter direito a subsídio de desemprego, doença ou reforma.
Quando este homem bem parecido entrou no gabinete do advogado Garcia Pereira, especialista em Direito do Trabalho, a causa apresentava-se clara como água. Havia ali um contrato de trabalho dissimulado e nenhum tribunal iria dizer o contrário.
O caso deu entrada na justiça – e de facto deu razão ao professor universitário. Mas 10 anos depois. Nesses 10 anos, Joaquim Silva Pereira tinha-se transformado noutra pessoa, profundamente triste, profundamente desamparada. Sem fonte de rendimento nem rede social de qualquer espécie, este homem só não morreu de fome porque o Banco Alimentar lhe garantia as refeições.
O professor universitário, com mestrado, passou da capital do país para um casebre emprestado, sem electricidade, num descampado nos arredores de Coimbra.
Isto aconteceu em 1991. Poderia crer-se que, 16 anos mais tarde, o estado de coisas teria melhorado em Portugal, que conheceu o crescimento económico e um sem número de fundos estruturais (mal ou bem aplicados) da UE. Mas a averiguar pela avalanche de e-mails e telefonemas recebidos no decurso deste trabalho, não é essa, infelizmente, a conclusão.
Trabalhadores de câmaras municipais avençados há dez anos, despedidos com a nova transição de mandato político, biólogos e engenheiros ambientais do Instituto de Conservação da Natureza, telefonistas de 50 anos dispensadas de um dia para o outro depois de 10 anos de casa, sem direito a nada, grávidas despedidas, arquitectos, professores, 'designers', jornalistas, tradutores, contabilistas, a área da cultura e do espectáculo em bloco – é todo um mundo em Portugal que está a recibos verdes.
Mais difícil foi conseguir que estas pessoas dessem a cara. A resposta mais ouvida era que gostariam muito de denunciar a situação, que sentiam imensa revolta, mas que testemunhar era assinar uma sentença de despedimento, e precisavam daquele emprego para viver.
As histórias que lhe contamos são, portanto, uma ínfima selecção dos casos que nos surgiram. Mas são representativas de milhares de pessoas impedidas de se autonomizarem dos pais, de constituir família, de comprar casa, de ter auxílio na doença, de poder respirar fundo ao fim de um dia de trabalho por saberem que os descontos obrigatórios que todos os meses lhes saem do bolso lhes servirão para alguma coisa, mesmo não falando numa longínqua reforma.
A esta camada assustadoramente crescente da população, encostada à parede, quase forçada a imigrar, que não ajudará na renovação das gerações, o que diz o Estado? É preciso fazer uma nova revolução?
Garcia Pereira nunca mais esqueceu o olhar «aterradoramente triste» daquele homem de ar respeitável, a quem o país desamparou por completo. «Hoje, este homem é uma sombra do que foi. Parece vinte anos mais velho, sofreu dois ataques cardíacos. Nada pode compensar aquilo por que passou». O Expresso tentou, ao longo de mês e meio, fotografar Joaquim, mas os problemas cardíacos que o mantiveram nos Cuidados Intensivos do Hospital de Coimbra impossibilitaram-nos de o fazer.
Quase um milhão a recibos
Foi no início dos anos 90 que os primeiros casos de «falsos recibos verdes» (um trabalhador que cumpre as mesmas funções dum empregado por conta de outrem, com horário, hierarquia, posto de trabalho, ordens de superiores) entraram pelo gabinete de Garcia Pereira. Hoje, continua a não haver dados exactos, pois «como é uma prática ilegal, não há números fidedignos». E assiste-se a novas tentativas de dissimulação do fenómeno, como a constituição de empresas sub-contratadas para prestar serviços.
O jornal 'Público' de 30 de Maio assegurava que há 883,6 mil trabalhadores a recibo verde no nosso país – o que representa mais do que a função pública (que tinha 580.291 funcionários em 2006). O INE não tem um método directo de apuramento de trabalhadores a recibos, mas adianta dados que permitem fazer contas: no 1.º trimestre de 2007, 646,7 mil pessoas tinham contrato de trabalho a termo, 188,7 mil contratos de prestação de serviços, e 66,1 mil pessoas estavam em subemprego visível. O que dá um total de 901 mil trabalhadores a recibo verde.
No século XXI, em Portugal, «continua a praticar-se 'dumping social'», denuncia Garcia Pereira. «Os trabalhadores a recibo verde são mão-de-obra dócil e barata. Não têm quaisquer custos para o trabalhador e não têm qualquer direito. Além disso, têm uma dupla tragédia em cima: se são despedidos ficam sem o seu salário e sem direitos sociais.»
As empresas ainda obedecem à lógica de que «só podem existir empresas estáveis com pessoas instáveis». Quanto à Inspecção-Geral de Trabalho, que tem por papel fiscalizar casos de fraude, a sua actuação é manifestamente insuficiente, segundo o advogado: «A OIT (Organização Internacional de Trabalho) recomendou que Portugal tivesse 750 inspectores no quadro. Neste momento, temos 252 inspectores para todo o país. Há uma total incapacidade de resposta. E também uma clara vontade de não 'apertar' com as empresas que têm estas práticas fraudulentas», diz. «A prosseguirmos por este caminho, o desastre é total. A lógica de que trabalhadores desmotivados e receosos são melhores é um disparate pegado.»
Sunday, July 29, 2007
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